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Conteúdo de   Anonymus Gourmet :: 

Poesia no Cardápio

por Anonymus Gourmet

24/01/2018 13:46     24/01/2018 16:06

O ato de cozinhar, no sentido amplo e intransitivo do verbo (seguindo a
substanciosa gramática do professor Rocha Lima), geralmente era considerado um
ofício menor. Na última década, entretanto, ocorreu uma ruidosa e amável invasão
de recém-chegados ao mundo maravilhoso das panelas.
A primeira providência para pilotar um fogão deixou de ser o aprendizado do ato
prosaico de descascar batatas, ou confeccionar uma simples e boa omelete, mas
sim providenciar num daqueles chapéus altos de chef. Um único prato faz a glória
desses simpáticos parvenus.
Assim, cozinhar ampliou-se para formas transitivas, não sonhadas na edição de
1959 do compêndio do professor Rocha Lima. Quem cozinha, cozinha alguma coisa:
a paella inesquecível, a macarronada de sonho, o arroz de china diferente, passando
por galinhadas e churrascos, muitas vezes com molhos nunca dantes combinados.
Cozinhar tornou-se uma manifestação elegante do espírito e do engenho
humano, acessível a quem tiver coragem e um chapéu de chef. “Vocês não queriam
democracia?” − perguntou um amigo de Anonymus Gourmet.
A fortaleza inexpugnável dos iniciados foi definitivamente arrombada pela
“multidão de neófitos, ainda na candidez das vestes próprias da Iniciação, mas
cheios de promessas”, na feliz expressão de Nestor Vítor, citada pelo Aurélio, que
esclarece: neófitos vem do grego neóphytos, substantivo masculino que, na Igreja
primitiva, designava o indivíduo recentemente convertido ao cristianismo, ou aquele
que acabou de receber o batismo, ou ainda, num sentido mais amplo, o indivíduo
recém-admitido numa corporação, definição caprichosamente copiada por Anonymus
Gourmet, fazendo deslizar a sua proverbial caneta Parker 61 abastecida com tinta
azul real lavável, como se fora um esqui em neve macia, nas páginas acetinadas da
Moleskine preta.
Cozinhar é também poesia. Por isso, os conselhos dados a um poeta, num
parágrafo de Rilke, citado por Otto Maria Carpeaux, em seu livro Vinte e cinco anos
de literatura, vale para esses valorosos cozinheiros de primeira fervura, − como
advertência e encorajamento: “Para fazer um verso, precisa-se ter visto muitas
cidades, homens e coisas. Precisa-se ter experimentado os caminhos de países
desconhecidos, despedidas longamente pressentidas, mistérios da infância não
esclarecidos, mares e noites de viagens. Não basta mesmo ter recordações: precisase
saber esquecê-las, precisa-se possuir a grande paciência de esperar até que elas
voltem. Pois as próprias recordações não o são ainda. Antes, as recordações devem
entrar em nosso sangue, nosso olhar, nosso gesto; quando, então, as recordações
se tornam anônimas e não se distinguem do nosso próprio ser, então pode acontecer
que, numa hora rara, nasça a primeira palavra de um verso”.

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