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Conteúdo de   Anonymus Gourmet :: 

A Linguagem Pedante do Vinho

por Anonymus Gourmet

16/01/2018 15:31     17/01/2018 15:36

De um livro maravilhoso, Histórias de Vinho, publicado pela L&PM, em 1980,
tomo emprestado o texto magnífico de abertura, “O Gosto do Vinho”, de Armando
Coelho Borges, que tem tudo a ver com o que Anonymus Gourmet pensa sobre o
prazer de um copo de vinho:
“Podem os enólogos e peritos dizer o que disserem, continuo achando que um
vinho bom não se descreve. Analisar é outra coisa. Decompor em laboratório, é
possível. Separar um ou outro elemento, muito fácil. Mas e daí? Como reunir depois
a todos para reproduzir a sensação do seu gosto? A linguagem fica a quilômetros
de distância. Só bebendo. É a definição ostensiva, não há outro jeito. E com a boa
música dá-se a mesma coisa. O pessoal que pensa que descreve vinhos tem uma
linguagem pedante que informa tanto sobre a bebida quanto um copo vazio. Falam
de aroma penetrante. Consistência aveludada. Áspero. Desequilibrado. Redondo. A
gente se espanta e chega a pensar: mas será que tomei tudo isso? Sendo o paladar
um liberador de emoções, eu posso dizer que o merlot recende à tarde morna, dessas
de pátio ensolarado, espremido entre a areia quente e o céu limpo, tendo como única
nuvem a sombra da vergamoteira. Já o cabernet sugere bruma, madeira seca para ir
ao lume, premonição de inverno no abrigo da intempérie. Outros evocarão sensações
diferentes. E o problema passa a ser subjetivo. Na falta de palavras exatas deve-se
preferir o silêncio. Certa feita estive na Granja União e na Vinícola Rio Grandense,
reunido na companhia agradabilíssima dos especialistas da uva e do vinho Danilo
Callegari, Mário Pasquali e Onofre Pimentel. A tarde caía e nós, no laboratório, a falar
e a falar de vinhos. Até que o Mário abriu uma safra antiga e excepcional de cabernet,
que fora provada e aprovada pelo grande escritor e entendedor de vinhos Paulo
Duarte. Bebemos em respeitoso silêncio. E se a minha memória gustativa ainda hoje
guarda a sensação daquele vinho, não poderia descrevê-lo além da revelação de que
era delicioso. Ao contrário das bebidas de efeito (como os destilados em geral) que
nada dizem ao paladar e sim ao ânimo, é uma bebida de gosto que conjuga os dois
fatores de modo admirável. Só que o prazer de tomá-la não tem qualquer semelhança
com a descrição mais poética ou exata que se possa fazer a seu respeito. Não chego,
entretanto, ao extremo de considerar supérfluas as literaturas sobre vinho. Um livro
desses pode ser muito útil. Ao folheá-lo nos lembramos que podemos deixá-lo de
lado, para retomar, sem intermediários, apenas munidos de saca-rolhas, o velho ritual
de magia, sabor e encanto.”

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